sobre o compartilhamento digital de hipocrisia

Comecemos com uma constatação bastante óbvia: pode-se colocar basicamente o que quiser na Internet, desde que seja sensível aos olhos e aos ouvidos (até agora não dá pra cheirar ou degustar coisas no computador – eu acho). Mas, pensemos: será que se deve subir qualquer coisa na rede apenas porque se pode fazê-lo? Se sim ou se não, não é da minha conta o que quem quer que seja escreva no twitter, facebook, ou whatever. Não tem nada a ver comigo o que aquele ou aquela fazem ou deixam de fazer, e nem me cabe me ocupar de (per)seguir seus tweets e dar conta de sua vida. E é claro que as grandes redes sociais são entretenimento. O que me interessa, incomoda e tem, sim, a ver com a minha vida é o incessante compartilhamento de hipocrisia. Sim, pode-se fazê-lo; tem-se todos os meios de se compartilhar o que quer que seja. Mas quando esse “o que quer que seja” se trata de informação imbecil e hipócrita, sinceramente, acho que não se deve fazê-lo.

A razão para tanto é simples: hipocrisia postada significa hipocrisia “compartilhada”, e isso pode ser lido como reprodução de informação impensada e imponderada. E porque isso é da minha conta? Porque me diz respeito, sim, o que resulta da reprodução desse tipo de coisa: estimular a não-reflexão; permitir a pulverização de idéias estúpidas; alienar um monte de gente. Em outras palavras, essa simples e aparentemente inocente prática tem o poder de contaminar muita, muita gente mesmo e, então, de reforçar problemas e estruturas de pensamento que definitivamente deveriam ser mudados. Segue alguma ilustração.

Na sua página no facebook, aparece uma foto de um menino, negro, só pele e osso, seguida de algum texto. Tudo bem, eu entendo que parece não fazer mal algum compartilhar aquela imagem de miséria e desconsolo. Em última instância é uma denúncia, certo? Afinal, as palavras ali dizem: “não reclame do que você tem; tem gente que não tem absolutamente nada”. Qual belíssimo pensamento de merda! Porque não refletir no quão absurdamente mesquinha é essa “moral da história”? Não, meus caros, isso não demonstra sensibilidade alguma. Apenas parece que demonstra. Sensibilidade é fazer alguma coisa a respeito disso, ainda que seja conscientização. A imagem do menino etíope desnutrido seguida das referidas palavras se trata de, apenas, banalização. No limite, reforça o quão imbecis somos nós, a ponto de tirar como moral de uma situação sub-humana uma lição para as bolhas particulares em que vivemos. É, sem precedentes, o cúmulo do individualismo.

Esse exemplo em especial me deprimiu bastante, porquanto veio seguido de outra foto maravilhosa: um pichador frente a sua ‘obra’, grafada num muro qualquer. Lia-se: “esse ano vou votar nas putas, porque votar nos filhos não deu certo”. A título de piada, pode até ser legal… Mas não é nem piada e nem legal. É, mais uma vez, reprodução de hipocrisia por algumas razões muito simples: em primeiro lugar, isso é um mau julgamento das putas. Talvez muitos que vendem o corpo (ou prazer) tenham uma noção muito mais ampla de mundo que o pichador piadista da foto. É sério. Em segundo lugar, isso não muda absolutamente nada em nada. Isso não chega a ser nem pensamento construtivo! “Ora, vamos votar então em outro personagem tipificado da cultura brasileira, porque pior do que está não fica”. Às vezes parece que todo mundo perdeu de vista o que vale a pena dizer e compartilhar: que talvez, seja possível reagir aos maus governos; que talvez seja possível exigir direitos. Ao contrário, o que se assiste é a reprodução da mesma posição tosca e inútil de não fazer nada, apenas esperar mais quatro anos, votar de novo, e ver no que dá. Ainda, aposto que a absurda maioria de quem compartilha imagens assim nem lembra pra quem votou.

Parece que se perdeu em algum lugar o que nós temos enquanto provocadores. Se não dá pra ir à África alimentar a imensa população desnutrida, então porque não provocar? O governo, o vizinho, os amigos… “Provocar” enquanto “conscientizar” pode levar a alguma realização mais palpável, sim. Mais ainda, porque não “sensibilizar-se” com respeito a outros problemas, que estão muito mais próximos e, portanto, são muito mais fáceis de serem alcançados? Tenho plena consciência de que não estou atuando assim de maneira tão concreta, mas me conforta saber duas coisas. Número um, preocupo-me em não simplesmente passar pra frente essas virais ‘pérolas de hipocrisia’; número dois, coloco-me como o tal “provocador”. Pode soar como subterfúgio, uma saída pela tangente, mas não é. Provocar é conscientizar, o que humildemente considero parte importante da educação.

Na verdade, esse é o grande problema. Educação não tem mais lugar mesmo entre quem é formalmente educado. Esquecemos que educação significa preocupar-se, pensar os problemas do mundo, denunciar o que está errado de modo a suscitar qualquer sorte de contraposição. Pessoa virou indivíduo e “sociedade” é uma lenda, que hoje quase sempre remete à massificação de fenômenos e não mais à integração em prol de ação conjunta.

E se vier alguém alegar que a sociedade não tem poder hoje em dia, abra o mecanismo de busca que você preferir na Internet e digite “Anonymous” na caixa de texto, especialmente na guia de buscas por Notícias. O grupo de hackers, em contestação aos projetos de lei SOPA e PIPA, como também à prisão dos donos do website Megaupload, derrubaram nos últimos dias as páginas da Sony Music, Universal Music, sites do governo americano, entre outros. Como se vê, existe coesão e existe poder na sociedade. O que falta é ação. O que falta é conscientização.